16 de jan. de 2012

Abstração - Texto

   Segundo João Luiz Vieira, a produção de filmes ao longo de toda a história do cinema foi marcada pela prevalência da busca de um efeito de naturalidade. Seu texto Cinema afirma que mesmo naqueles momentos em que se criou uma estética de vanguarda, com a recusa do modelo clássico, parecem ter persistido elementos ligados a este modelo que, entre outras coisas, se caracteriza pelo efeito natural da estrutura narrativa, dos personagens, da história contada e da semelhança visual.
   A alternância ou tensão entre realismo e experimentação seria, portanto, uma força constituinte do cinema e de seu fascínio junto ao público.
   Dentre todos os filmes que vimos até agora no curso, escolha dois que na sua opinião tragam esse tipo de tensão. Analise os aspectos que você associa ao naturalismo realista e os que identifica como características de uma produção mais experimental, procurando refletir sobre o sentido dessa tensão.
   Elabore um texto, com no máximo duas laudas de extensão, e envie ao tutor.

 
Texto:
   Segundo Arlindo Machado, as histórias do cinema pecam porque são em geral escritas por grupos (ou por indivíduos sob sua influência) interessados em promover aspectos sociopolíticos particulares; tornando-se ou história de sua positividade técnica ou a história das teorias científicas da percepção e dos aparelhos destinados a operar a análise/síntese do movimento, cegas entretanto a toda uma acumulação subterrânea, uma vontade milenar de intervir no imaginário. Assim, o que a sociedade reprimiu na própria história do cinema, ou seja, o mundo dos sonhos, do fantasmagórico, a emergência do imaginário e o que ele tem de excêntrico e desejante, tudo isso, enfim, que constitui o motor mesmo do movimento invisível que conduz ao cinema; fica reprimido na grande maioria dos discursos históricos sobre o cinema.
   A questão levantada por Arlindo Machado, não é decidir se o movimento que o cinema manipula é verdadeiro ou falso para sua compreensão como fenômeno cultural, mas avaliar o que ocorre quando um movimento "natural" é decomposto em instantes sucessivos para ser depois recomposto na sala escura. Se a percepção do movimento é a síntese que se dá no espírito e não no mecanismo do olho, o cinema deve ser entendido também como um processo psíquico, um dispositivo projetivo que se completa na máquina interior.
   Inventado em 1895 pelos irmãos Lumière para fins científicos, o cinematógrafo revelou-se peça fundamental do imaginário coletivo do século XX, seja como fonte de entretenimento ou de divulgação cultural de todos os povos do globo. Em 28 de Dezembro do mesmo ano os irmãos Lumière exibiram no Salon Indien, aquele que veio a ser conhecido como o primeiro filme da história: “A chegada do trem à estação Ciolat”, não deixa de ser uma experimentação para a época (pioneirismo), logo alterna a tensão da experimentação e o realismo. A cena do trem em movimento é uma panorâmica (externa, ao contrário também do teatro tradicional) que documenta, não deixa de ser uma espécie de “mostração e ilustração” direta do acontecimento, todavia regida por um narrador. O experimento dos irmãos Lumière é uma marca da modernidade, pois vai além da fotografia. Realista ao “imprimir um cunho de verdade, se adequando a uma concepção naturalista das aparências externas visíveis do mundo. Com um olhar diferente e mediador, imprimindo e abrindo possibilidades de conquistas, de progresso estético, de evoluções na linguagem, de tensões e tentações para os espectadores.
   Ainda no tempo do cinema mudo, o debate entre os cineastas russos Dziga Vertov e Serguei Eisenstein traria contribuições importantes para uma definição da natureza da imagem cinematográfica. Ambos entendiam que o filme é uma construção.
   Para Eisenstein, "a montagem é o princípio vital que dá significados aos planos puros", ou seja, o filme seria criado a partir de sua montagem, e não poderia então ser visto como uma reprodução fiel da realidade. Seria a linguagem criada pela montagem que, segundo ele, nos levaria a uma verdadeira análise do funcionamento da sociedade. Embora compartilhasse da idéia de que o filme não é a cópia fiel da realidade e sim uma construção feita por seu realizador, Dziga Vertov só admitia no cinema documentário a capacidade de expressar a realidade: a montagem se utilizava das imagens captadas pela câmera sobre uma dada realidade.
   No filme “O Homem da Câmera” Vertov, recusa o cinema dramático e a encenação, tornando-se figura central no desenho de um cinema não narrativo, feito nas ruas, antecipando assim todo um movimento voltado posteriormente para o documentário. Com um discurso cinematográfico no qual demonstra de maneira reflexiva a sua experimentação, com imagens do mundo, mostrando-o, desmontando-o, no seu modo operante descontinuo e movimentado, e ao mesmo tempo realizando uma linguagem decodificada, que remete ao pensamento e a um discurso critico. Vertov radicalizou o movimento no seu método de decifração e na recusa das facilidades de um tipo de reprodução imediatista. A sucessão de imagens em ritmo alucinante criado pela montagem produz e reproduz incessantemente relações que dificultam estabelecer ligações imediatas. Ao mesmo tempo, o movimento dos olhos nos trechos de Vertov também podem remeter para a ficção, mas a contrapartida, as imagens da cidade preenchendo uma boa parte do tempo de exibição, garante que a fonte é um documentário sobre a cidade. Entre o olhar perdido do homem, as ruas de um grande centro urbano, o cotidiano das pessoas partindo para as suas casas, correndo para não chegarem atrasados no trabalho ou simplesmente num passeio, se cruzam com prédios, transportes e animais, que parecem integramente correr junto ao tempo mostrado. Mostrando tanto a rotina real da sociedade meramente capitalista, também da imagem em movimento, que faz o espectador visualizar vários espaços, na qual circulam-se voltando ao mesmo ponto em destaque, que seria o olhar humano.
   Na ilusão do real – sentido que propicia ao espectador aquilo que o cinema tem de mais característico: a percepção do movimento. Podemos observar, essa alternância entre o que é sugerido como realismo e experimentação, no filme Entr’acte, de René Clair. Onde uma figura feminina, representada pela bailarina, para indicar a leveza proposta pelo balé clássico, através dos movimentos coreografados, contrastava a ação da personagem, fomentando a plasticidade e o valor estético da cena. Ironizando a justaposição de imagens, que na formação da montagem, articulou uma tensão entre o que seria natural e comum aos olhos do espectador, distorcendo esse realismo, principalmente ao ironizar a personagem, na revelação do seu rosto, mostrando uma barba.
   Quando se filma com planos-sequênciais o fluir do tempo tem a duração bastante próxima do real. O ritmo é um dos fatores determinantes tanto nas narrativas como na imagem do cinema. E este fluir do tempo se dá não na montagem, mas no interior do quadro. As tomadas são impregnadas de tempo, assim fazendo do cinema uma arte, na qual permite ousar entre o naturalismo realista e a produção experimental, entre dois focos. O reconhecimento do valor documental do cinema se ateve ao longo do tempo, identificando a imagem com a verdade obtida pelo registro da câmera. Na realidade, a discussão sobre a linguagem cinematográfica esteve restrita aos produtores de imagens - os cineastas - e aos teóricos do cinema. Foi somente a partir de meados da década de 1960 que a discussão propriamente metodológica sobre a relação cinema-história passou a existir, tendo como ponto central a questão da natureza da imagem cinematográfica. O impacto produzido pela criação e difusão da televisão, que colocou as imagens no espaço doméstico, fez com que os cientistas sociais não mais pudessem ignorar o mundo da câmera. Por outro lado, os próprios caminhos que a teoria do cinema passava a trilhar, sobretudo com a difusão da semiologia, implicaram a adoção de novos princípios no campo das reflexões sobre a imagem, com reflexos em outros domínios do conhecimento, inclusive a história.

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